O reinado do bobo da corte
- Sr. Andrade da Fonseca
- 22 de jul. de 2022
- 8 min de leitura
Essa figura marcante em alguns contos de fadas, e lendas existiu realmente, e tinha até certo status na corte, muito lembrada por ser aquele responsável por animar a todos em festas ou simplesmente para alegrar o rei com suas bobagens. Apesar de hoje em dia estar atrelado a uma ideia de brincadeira ou em um sentido jocoso, o bobo muitas vezes era o único que podia dizer certas coisas ao rei sem ser condenado por isso, pois ele tinha em sua defesa a ideia da diversão (retomarei esse ponto no decorrer do texto).
O bobo da corte com o tempo sumiu lá por volta do século XVII, mas a ideia de um bobo da corte sempre esteve no imaginário de algumas fábulas ou em desenhos que remontam a um período medieval, eu mesmo, me lembro de o ver em um algum episódio do desenho pica-pau sendo humilhado ou servindo de escada para alguma piada do personagem principal.
Também o vemos na carta do baralho, onde este tem o nome de coringa, e é uma carta com boa utilidade. Já no tarô, ele ganha o nome de o louco com sua habitual vestimenta chamativa e muitas vezes com um chapéu em formato de estrela com enfeites nas pontas. Além disso, ele é nome do principal vilão do super-herói dos quadrinhos, batman.
Do caráter alegre ao caráter sombrio de um vilão, o bobo da corte está no imaginário mundial e pode ser ambíguo devido trazer um ar de inocência e ao mesmo tempo de maldade, um alguém que pode ser bom pelas suas brincadeiras e alegria, mas também alguém que pode ser mau pelos seus atos beirando a sandice.
Na nossa atualidade podemos trazer a ideia do bobo da corte muita conjunta a do palhaço, outro ser ambíguo que tem relação com a teatralidade e tão antigo quanto no nosso imaginário, e, apesar de o circo, local habitual destes, ter diminuído da metade do século passado para cá, ainda podemos ver os espetáculos nos picadeiros remanescentes dessa prática que é um fruto cultural brasileiro e mundial.
Em um circo veremos o palhaço atuar de maneira cômica ao lado de trapezistas, contorcionistas e mágicos e mais atualmente no contexto da criminalidade ele tomou características que servem um imaginário de organizações de crimes organizados que ostentam a imagem do palhaço ou do coringa em tatuagens e símbolos com a frase de que "a alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo". No caso de um desses grupos, o PCC (Primeiro Comando da Capital), a ideia de ver o circo pegar fogo tem a ver com sentido de ser contra o sistema.
Voltando ao bobo da corte, podemos encontrar sua figura não somente na cultura medieval europeia, mas também em outras culturas fora do velho continente, esse personagem traz consigo, apesar de muitos não perceberem, uma carga pesada nos ombros, ele é quem deve trazer sorrisos num momento de tristeza, apatia ou monotonia. Vejamos que, é ele que deve animar o ambiente, mudar os ares em momentos variados deve agradar o rei e a corte. E então que nos poderá vir a seguinte questão? Quem faz o palhaço rir? Ele o responsável por trazer os risos, consegue achar graça daquilo que repete aos outros? Fora dessa indagação, devemos lembrar que ele não somente conta piadas, ele também é um virtuoso em instrumentos musicais, e declamava poemas. Já na cultura pop e entrando no universo do cinema, podemos ver em um filme do diretor Robert Eggers, conhecido pelo filme a bruxa e o farol (que eu particularmente gosto muito) que também dirigiu o filme chamado o homem do norte, onde vemos um bobo da corte interpretado pelo brilhante ator Willem Dafoe em que este personagem demonstra uma versão, além do divertimento ao rei, uma espécie de sacerdote do reino.
Em nosso século atual, onde já não existem monarquias em maioria no mundo, o bobo da corte se assemelha mais ao palhaço de circo, porém agora sem o caráter de servir a corte, mas ao divertimento do público. Nos tempos mais atuais, ou mais especificamente nos últimos dez anos, tivemos em nossa política um nome que alçou grande votação na eleição amparado em sua fama como palhaço e comediante, o palhaço Tiririca com o seu bordão que foi sucesso: "Vote no Tiririca! Pior do que tá não fica."... Infame frase, pois apesar da frase afirmativa, ela foi errônea e se demonstrou quase premonitória no seu sentido inverso, pois a coisa piorou. Claro que não devido a frase, mas a outras questões houve um desmoronamento na política brasileira que colocou mais uma crise para ser enfrentada.
Em outra parte do mundo, no mundo que uns designam como o primeiro mundo, os Estados Unidos da América, local admirado e sonhado por muitos, alçou a presidência da república não um palhaço, mas alguém bem conhecido popularmente, Donald Trump, alguém que já apareceu em filmes, séries e em lutas do WWE sempre sendo uma figura de homem forte que enriqueceu com o trabalho e estava rodeado de belas mulheres e nos melhores eventos, o bilionário conseguiu se tornar presidente da maior potência mundial com seu jeito extravagante de ser e junto com grupos de extrema-direita fez a disseminação de teorias conspiratórias das mais escabrosas que iam de pessoas que acreditam em terra plana até quem acreditasse em reptilianos, mas apesar do absurdo que isso possa parecer, o pior é que essas pessoas ganharam muitos adeptos em suas teorias e o mais absurdo ainda, elas tinham em seu poder um grande número de armas, já que os EUA tem uma política bem abrangente na questão do uso de armas. Então, juntando o pior de tudo vimos a maior democracia do ocidente culminar na invasão do capitólio num episódio que marcou para sempre a história da democracia mundial. Duvido que nos primórdios da idealização democrática, algum grego tenha sonhado com algo do tipo.
No caso dos EUA acredito que a visão que mais se encaixe na figura de Donald Trump seja do Coringa, devido sua dualidade, alguém que alimenta o ódio nas pessoas tal qual o Coringa do segundo filme do Batman de Nolan, mas que não chega nem perto da genialidade do personagem quando se trata de pôr o plano em prática, o que este Coringa maior fez foi alimentar um monstro que já é antigo no país, o terrorismo doméstico, um problema que só cresce e que ganha novos receios com as leis que deixam as armas mais fáceis a todos. Apesar de pensarmos que o palhaço ou o coringa são inofensivos, estes têm o poder quase de um sacerdote que conduz seus seguidores para suas crenças espirituais ou seja lá quais sejam.
E no Brasil, aqui ficamos somente no Tiririca? Não, quem dera. Aqui sofremos com a ascensão de um discípulo de Trump que anotou todas as coisas que pode para realizar a mesma tática de alçamento nas eleições, tanto que contratou até o mesmo marqueteiro que fez a campanha política vitoriosa em 2018, trazendo a tona um nome que aparentava ser uma zebra no páreo, Jair Messias Bolsonaro. Com os mesmos adeptos de teorias conspiratórias e com o adendo do ódio ao último governo do país que se degradou em escândalos de corrupção que culminaram em um impeachment e governo interino, este soube utilizar a internet como ninguém enquanto alguns duvidavam que ele fosse ter algum respaldo devido sua baixa janela de transmissão durante a propaganda política obrigatória. Erraram muito feio aqueles que se basearam somente na ideia de que ele não ganharia força por conta de estar em um partido menor, ou de parecer algo que o brasileiro não aceitaria, pois devemos lembrar que nos governos anteriores uma coisa que se disseminou muito bem foi a internet e o uso de celulares, onde em estimativas atuais os números apontam que existem mais celulares do que habitantes no país, ou seja, é provável que uma grande quantidade de pessoas que moram no país tenha mais de um celular e isso foi um dos principais instrumentos para o crescimento da popularidade deste que governa o país atualmente.
E será que esse fenômeno do celular alinhado com o maior acesso da internet serviu para trazer mudanças somente no ramo político?
Creio que não, outros ramos da sociedade foram totalmente impactados não somente pelo aumento de celulares que, de fato, é um número astronômico, mas também pelo uso de computadores nos lares, uma das características dos governos anteriores também foi o aumento dos computadores nos lares, e também se mudou um costume, as pessoas pararam de somente procurar por entretenimento e informação somente pela tevê e começou a procurar em outros meios pela internet, e claro, a questão do crescimento dos aparelhos com internet renderia um livro todo, mas focando somente no quesito mudança de costume, plataformas como Youtube e Facebook foram consagradas como as grandes intermediadoras das informações que o público procurava.
Mas o que isso tem a ver com o bobo da corte? Tudo.
Agora o palhaço, bobo da corte ou coringa tem novo palco, não precisam ir encontrá-lo, ele está na palma das suas mãos ou em frente aos seus olhos, você não precisa esperar o horário para o programa começar, você escolhe o programa e simplesmente clica, então o entretenimento está mais fácil e agora vemos comediantes se tornarem os grandes reis em demasiados aspetos, não somente na política, agora eles podem opinar em tudo, e alguns se alinharam até a pensamentos tão extremos quanto imaginar que a terrar é plana, estes agora podem simplesmente questionar coisas que antes ninguém questiona em nome da liberdade de expressão que em muitos casos se confunde com liberdade de se cometer crimes e infelizmente vemos casos de racismo e preconceito estourarem.
E diante disso, toda a sociedade fica calma? Não, aparecem os justiceiros da internet.
Farejando prováveis crimes ou bobagens, estes justiceiros procuram por coisas graves ditas nos perfis de facebook, twitter (que aliás se tornou ferramenta oficial de vários governos) para tentar demonstrar como eles são corretos e como os outros são errados. Não estou desmerecendo a ideia de procurar corrigir, mas houve casos de pessoas que apenas aproveitaram a onda de massacrarem opiniões ou falas infelizes para se promover e então que voltamos ao bobo da corte medieval que poderia falar o que bem entendesse com o pretexto de apenas estar sendo jocoso para tirar sorrisos do rei.
Os bobos da corte ganharam um palco tão grande e incomensurável que duvido que muitos deles tenham imaginado o retorno que eles teriam com isso, a arte ganhou muito com a internet, e justamente, a comédia sempre esteve no seio da pátria brasileira, um povo tão sofrido quanto o brasileiro adora uma anedota para sorrir após um dia inteiro de trabalho cansativo. Isso sustentou muitos destes bobos que agora sentam-se triunfantes nos tronos que antes não imaginariam que poderiam encostar, desfrutam do prazer sem igual da riqueza. O brasileiro valoriza muito mais uma piada do que uma nova lei, e se puder fazer piada da nova lei melhor ainda. Novamente, não tem como culpar alguém que prefere o riso, mas o problema maior é que a seriedade é vista como chatice, a responsabilidade como brega e de um minuto para o outro o importante é apenas rir e assim esquecer os problemas. É mais ou menos como varrer a sujeira para debaixo do tapete, ninguém vê e tudo continua como antes, até que já não caiba mais sujeira, e no fim das contas não importa muito se esse rei que hoje governa está sendo bondoso ou maldoso desde que se possa sorrir com um pouco de dinheiro no bolso.
Sendo assim, a comédia se torna o ópio do povo nos tempos atuais, e com a ascensão de novas redes sociais voltadas para os prazeres momentâneos como tik tok e instagram, a sociedade se converge para uma realidade imediatista que assim como um rato de laboratório toma choque, mas procura o queijo. O bobo da corte já se assentou de forma confortável em seu trono e a tática de continuar confundindo para poder reinar ainda impera em seu reinado, enquanto ele conseguir ludibriar o povo com suas peripécias, seu reino se mantem intacto e ele se protege como pode colocando ao seu lado os aliados mais fortes e se desvinculando de qualquer perigo que possa haver. Ele emprega muito bem a faceta de bem com um sorriso estampado no rosto, mas com a malignidade que lhe convém articulando as peças no tabuleiro, coloca a torre ao seu lado bem próximo do bispo e fortalece suas artimanhas no novo jogo político dentro do palco da internet.
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